DEPOIS DA TEMPESTADE



Talvez ele não saiba que aquela dor que ele causou, calou os olhos dela violentamente por uns tempos. Isso não é crime, é carma: magoar alguém assim, dentro do melhor vestido, remover com lágrimas o rímel cuidadosamente passado, deixar tão descrente alguém que achava a vida mágica...


Talvez ele nem imagine que ela parou de sair com os amigos para beber vinho em casa escondido, no café da manhã. E escreveu vinte e nove cartas sobre a raiva e nunca enviou porque era moça espiritualista e tinha que manter o discurso saudável do “isto também passará”. 
(Não mandou, mas depois da segunda garrafa de vinho às três da tarde, foi por um triz).

Talvez ele nunca saiba que ela mudou os móveis de lugar, mandou queimar o colchão que já conhecia o peso dos dois corpos, e deu pro morador de rua o edredom que testemunhara tantos abraços noturnos.
Dormiu no chão, quis mudar de religião, leu Lacan e criticou Freud.Pensou em mudar de curso, de profissão, de cidade.
Quis mudar de si, já que seu corpo era a casa de um só sentimento.
Fez uma viagem, não quis conhecer ninguém, posou de antipática porque estava apática.

Se escondeu da lua cheia, fez do seu quarto um campo de concentração e depois se mudou para sala.
Trancou todas as portas para não entrar qualquer ilusão.Por tanto tempo era ela e sua tristeza intransitiva.

O que ele também não sabe porque nem ela sabia, é que um dia ela acordaria assim, vazia daquele amor.
A dor exaustiva de cabeceira havia cessado, deixada no fundo do poço.Parou de se alimentar daquela porção individual de desilusão e enterrou o passado num túmulo desconhecido, para que não houvesse a menor possibilidade de revisitá-lo.

(Ele quase soube disto quando pensou que ainda estava recente para ensaiar uma recaída,um “flashback.” Mas para ela, que só soube na hora do reencontro tão almejado,já era tarde.)

E o seu melhor vestido pedia uma nova chance e um rímel à prova dágua.




Marla de Queiroz




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